O futebol é muito mais que um jogo e seu impacto na sociedade vai além das quatro linhas do campo. Numa época em que as SAFs, os Mecenas e Sheiks derramam rios de dinheiro com o objetivo de conquistas títulos. O Rayo Vallecano se destaca na cidade de Madri não por fazer frente aos vizinhos Real e Atlético, mas sim pela sua história de luta e contribuição ao bairro em que foi fundado.
Nossa primeira manhã em Madri começou com um café da manhã típico espanhol. Na varanda do nosso Airbnb, desfrutamos de Bocadillos con jamón serrano e um copo de suco de laranja, além da tradicional xícara de café.
O encontro com o Javier, nosso guia, aconteceu na Estacion Del Arte, linha 1 do metrô. O destino seria Vallecas, anteriormente município independente, mas que em 1950 foi anexado e hoje é um bairro que pertence a cidade de Madri.
Entre a boa e velha conversa sobre o clima ou como o custo de vida na cidade estava ficando cada dia mais alto. Javier nos contava com orgulho um pouco da história do bairro.
A caminho de Vallecas
Villa de Vallecas, anuncia o aviso sonoro. As portas se abrem e rapidamente saímos. Caminhamos poucos metros e não demora muito para subir as escadas de saída e perceber uma “cidade” com uma arquitetura bem diferente do que vimos no bairro de Salamanca.
O bairro de Vallecas, teve grande importância na luta contra a ditadura espanhola e até hoje seus moradores se orgulham desse feito.
Caminhando pelas ruas repleta de folhas amareladas do outono, é fácil reconhecer o outro orgulho do bairro, o Rayo Vallecano. Fundado em 1924, o clube é considerado por muitos o “primo pobre” da cidade de Madri.
Sem o dinheiro e a badalação dos conterrâneos, não é exagero dizer que o Rayo tem um papel fundamental no desenvolvimento de Vallecas.
Los Bukaneros de Vallecas
“Ame o Rayo, odeie o racismo”, e “Rayo, pequeno no esporte, mas grande nos valores”. São algumas das frases que vimos pintadas em muros espalhados pelo bairro.
Javier nos conta um pouco sobre os Bukaneros, uma das ultras (torcida organizada) do clube, e como eles tem uma participação ativa no dia a dia da comunidade.
Los Bukaneros faz questão de deixar claro o seu viés antifascista e se posiciona abertamente contra qualquer manifestação racista e homofóbica. Aliás, as frases são cantadas pela torcida nas arquibancadas do modesto Estádio Teresa Rivero.
Talvez um dos episódios mais famosos envolvendo a torcida, seja o protesto massivo contra a permanência do atacante Zozulya. Não pelo desempenho em campo, mas pela suposta ligação do atleta com grupos neonazistas ucranianos. Com a pressão das arquibancadas, o clube rescindiu o contrato com o jogador.
Passando em frente a uma casa simples, Javier conta que contribuiu financeiramente para que Carmen, uma moradora do bairro, tivesse um lugar para morar.
Por atraso no pagamento da hipoteca, Carmen Martínez foi despejada de sua casa. Ao ficar sabendo da notícia, os torcedores se mobilizaram para arrecadar dinheiro suficiente para pagar a dívida. Além disso, os adeptos do Rayo Vallecano se comprometeram a pagar o aluguel de forma vitalícia, para evitar que o problema de repetisse no futuro.
Até hoje é possível ver uma faixa nas arquibancadas com a mensagem “Carmen se queda” (Carmen fica), lembrando o episódio ocorrido em 2015.
Rayo Vallecano e a luta contra o racismo
A caminhada continua e quando percebemos já estamos próximos ao estádio da cidade. Na fachada existe um painel feito de azulejos que exibe a figura de um homem negro e a seguinte mensagem: “Por sua defesa da faixa e sua luta contra o racismo, o rayismo nunca te esquecerá”.
Antes mesmo de conseguir fazer qualquer pergunta, Javier começa a nos contar sobre o rosto eternizado naquela parede.
Wilfred Agbonavbare, ou Willy, como é conhecido naquele bairro. Nigeriano, foi goleiro do Rayo Vallecano nos anos 90 e se tornou um símbolo da luta contra o racismo.
Saiu da Nigéria com apenas 24 anos para assinar com o Rayo, em uma época que não era comum jogadores africanos atuarem na Liga Espanhola. Willy rapidamente se tornou ídolo da torcida após ser um dos destaques do time que subiu para a primeira divisão em 1992.
O goleiro foi vítima do racismo das torcidas rivais durante todo o tempo em que permaneceu no clube. Seu sonho era defender o Real Madrid, no entanto, os torcedores merengues eram os que mais atacaram Willy, e esse desejo nunca se realizou.
Todos os anos a Bukaneros promove um evento chamado, ‘Jornada contra o racismo”. Uma forma de homenagear o ídolo e ajudar no combate ao preconceito. Wilfred Agbonavbare faleceu em 2015, aos 48 anos de idade, mas estará para sempre eternizado na memória dos torcedores rayistas e nos muros do bairro de Vallecas.
A volta para casa
Já era fim de tarde quando retornamos a correria e agitação de Salamanca. No metrô, Javier ainda nos conta tantas outras histórias sobre aquele modesto clube.
Nossa passagem pela cidade de Madri estava apenas começando, mas saímos de Villa de Vallecas com a certeza de que o Rayo Vallecano é muito mais do que um clube de futebol. Se o Real Madrid tem craques, títulos e glórias, o Rayo tem uma torcida, um bairro e um propósito.
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