O Dia do Batismo

Feliz Dia dos Pais, nada mais do que um relato de um torcedor.

A festa em um estádio de futebol vai muito além do que ocorre nos gramados. As bandeiras, sinalizadores, baterias, confetes, serpentinas e a multidão com as suas coreografias fazem o nosso corpo arrepiar por mais que a arquitetura e a política nas novas arenas esfriem o que há de melhor no espetáculo do futebol, que são as torcidas livres para fazerem o seu carnaval nas arquibancadas.

Talvez, a liberdade para torcer do jeito que quisermos é tão ou mais importante quanto o resultado do jogo em si.

Maracanã

Aconteceu no dia 01/07/1992, na segunda partida entre Vas x Fla, jogo valendo pela segunda fase Campeonato Brasileiro, em uma quarta feira que eu senti a primeira vez a inesquecível sensação, do que eu considero uma das maiores festas populares de todo o mundo, um clássico no gigante, imponente e saudoso que foi Maracanã.

Me tornei torcedor do Flamengo no ano de 1991, após escutar com o meu pai e os meus colegas de infância a decisão do Campeonato Carioca na Rádio Globo (na voz do nobre e fenômeno José Carlos Araújo e os “trepidantes da jogada”), contra o Fluminense.

Vitória do Mengo por 4 a 2 e jogadores como Gaúcho, Nélio e Júnior me encantaram e me conquistaram. Se tornaram os meus primeiros ídolos do esporte bretão. O Gaúcho era o meu atacante no meu primeiro time de “futebol de botão”, o Nélio era o meu símbolo da raça e o Júnior Capacete representava a magia que era torcer pelo Mengo.

Mas, voltando a falar sobre a minha emoção em ter pisado pela primeira vez em um templo tão sagrado, que é o Maracanã e os seus arredores (antes do crime da sua demolição que a população do Rio de Janeiro assistiu de maneira estática, aceitando as tenebrosas transações dos desgovernos do Estado e outras instituições que eu me nego a citar por aqui), após muitas promessas do meu pai para me levar ao estádio em um jogo decisivo contra o seu maior rival, foi uma sacada impressionante.

Tudo conspirava a favor. O clima e o tempo estavam agradáveis, o time do Flamengo estava prestes a fazer um grande feito com uma geração de garotos e jogadores experientes no elenco, que era dar um passo para chegar à final em um campeonato que já tinham os seus favoritos em seu grupo. Botafogo e São Paulo, que timaços!

O meu pai, além de um rubro negro fanático, não respirava somente o Flamengo e sim a literatura e a língua portuguesa. Era um professor, dos bons, defensor da educação pública e responsável com a educação da família, prezava por isso e nunca abriu mão de investir nos meus estudos. O rádio, os discos e os livros eram os seus companheiros em momentos de lazer. 

A MPB FM era sintonizada e as suas preparações de aula, leituras e as diversas atividades voltadas para as salas de aula eram realizadas com muito prazer e paciência. Muitos jogos nós assistimos juntos também dessa maneira. A Rádio Globo e os estudos sempre na mesma sintonia quando não íamos acompanhar o time nos estádios.

Enfim, no dia do jogo, eu encontrei o meu pai com a sua surrada camisa do Flamengo, ainda de pano. Nos encontramos em frente ao Curso Infantil Laura Cristina, escola de ensino primário localizada no bairro de Santa Catarina, no munícipio de São Gonçalo – RJ.

Com um sorriso e um jeito bem receptivo, meu pai surpreendeu a mim e a minha irmã pela sua presença. Nós não estávamos acostumados, pois, a sua carga horária de trabalho era intensa de segunda a sexta feira e o mesmo compensava a atenção em casa junto a minha mãe nas nossas atividades diárias.

Chegamos em casa, e ouvi do mesmo: “Coloque uma roupa, vamos ao Maracanã.”, “Você vai conhecer um inesquecível espetáculo, um Maracanã com casa cheia em um Fla x Vas”. Fiquei paralisado! Eu como um rubro negro apaixonado, ouvia as promessas do meu pai em me levar ao Maracanã, mas, jamais eu iria imaginar que a promessa iria se cumprir tão rápida e em um jogo tão importante.

Peguei qualquer bermuda, coloquei a minha camisa que eu tinha ganho no Natal de 1991, a camisa 09, coincidentemente do Gaúcho, e coloquei o meu “kichute” e vamos nessa! Rumo ao maior do mundo!

Descemos a rua, falamos com os vizinhos. O meu pai, como se levasse o filho para conhecer o “mundo das meretrizes”, estufou o peito, franzino e corcunda e disse aos colegas que nos olhavam com um tom de admiração: “É a primeira vez dele no Maracanã”.

Eu era tímido, tinha fala mansa e senti uma responsabilidade tamanha em garantir uma vitória logo na minha estreia. Pegamos o 423 Vila Isabel no Centro de São Gonçalo, com muitos rubros negros cantando e pulando no ônibus.

Meu pai me explicava os “rituais”, que infelizmente se perderam com o tempo, como o balão que torcíamos para subir a marquise (caso o balão não ultrapassasse a marquise do estádio, a derrota era considerada certa), foi me ensinando as músicas que os torcedores cantavam como “Oh! meu Mengão, Eu gosto de você, Quero cantar ao mundo inteiro, A alegria de ser Rubro – Negro (…)”, “Domingo, eu vou ao Maracanã (…)” e outros clássicos das antigas nas “arquibas”.

Maracanã
Foto apenas ilustrativa: Agência: O Globo

Já chegando ao estádio e com a alegre cantoria dentro do ônibus, a ansiedade e o frio da barriga aumentam. Quando o meu pai aponta o anel do Maracanã ao descer do ônibus, fico deslumbrado com tanta gente, bandeiras, fogos, camisas rubro negras e muita alegria.

Gente bebendo, comendo churrasquinho, pulando e cantando como se não houvesse o amanhã. Dei a mão ao meu pai e não larguei. Fiquei aflito e tenso com a atmosfera até então inédita para mim. Eu tinha entre nove e dez anos, comecei a entender o que se tratava um Fla x Vas. 

A festa em um estádio de futebol vai muito além do que ocorre nos gramados. As bandeiras, sinalizadores, baterias e a multidão com as suas coreografias fazem o nosso corpo arrepiar por mais que a arquitetura e a política nas novas arenas esfriem o que há de melhor no espetáculo do futebol, que são as torcidas livres para fazerem o seu carnaval nas arquibancadas.

Talvez, a liberdade para torcer do jeito que quisermos é tão ou mais importante quanto o resultado do jogo em si. 

Chegamos à rampa do Bellini, comecei a ganhar forças com a torcida cantando novamente os clássicos, me senti à vontade com os rubro negros que se direcionavam para a arquibancada. Esqueci-me da sede e da fome que eu estava um pouco.

Ao chegar à arquibancada, no setor onde fica a torcida Raça Rubro Negra até os dias de hoje, enxergo aquela imensidão verde e o monumento colossal. Chegamos cedo e o meu pai me contando as histórias de alguns jogos e gols do Flamengo como um Nelson Rodrigues ao meu lado, apontado o dedo e me mostrando os caminhos que ocorreram os gols mais fantásticos que tinha visto até naquele momento da sua vida.

O estádio foi enchendo, a torcida do Flamengo e as suas organizadas foram chegando com as suas bandeiras e baterias, confetes e serpentinas e a alegria contagiante foi tomando conta das arquibancadas de cimento, e o povo acompanhou as batidas com as palmas e os cantos. O início da partida estava marcado para às 20:30, ali começa a nossa tradição de chegarmos cedo no estádio para entrarmos no clima e sentir o calor e a emoção do povo. “Geraldinos” e “arquibaldos” de ambas as torcidas proporcionavam e mobilizavam a festa. O dia começa a se tornar inesquecível!

Espetacular foi a entrada dos times em campo e é uma lástima que esse ritual tenha se perdido nas arenas do “futebol moderno” e com o “New Maracanã”, diminuindo a festividade, colonizando e elitizando os costumes do torcedor, impedindo a sua espontaneidade.

Vibrei e gritei como nunca com as bandeiras tremulando, os fogos estourando e com os sinalizadores nos iluminando com a benção do Cristo Redentor quando era visível aos nossos olhos. São momentos que nenhuma “modernização” e o conforto oferecido por esses escroques que gerenciam o nosso futebol vão compensar. Nada vai suprir o que nós amantes do futebol perdemos.

Sobre o jogo, não tinha ainda a capacidade de ter análises táticas ou técnicas, na verdade, tenho essa falta até hoje, “tô” nem aí! Estádio de futebol é para torcer e apoiar o time, não suporto uma galera que vai ao estádio, cruza os braços e finge ser um olheiro ou algo do tipo.

Sempre reivindico que a arquibancada é o meu Carnaval. Aprendi que o futebol é um alívio para as almas tristes e cabisbaixas nos diversos momentos obscuros em nossas vidas.  

A descida da rampa ao sair do velho Estádio Jornalista Mário Filho foi consagradora. O sorriso de um pai ao sentir com a missão cumprida em ter levado o filho para ver o seu time do coração pela primeira vez, ser coroado com uma vitória sobre o maior rival, atravessar a ponte e voltar para São Gonçalo em um ônibus lotado até a chegada em casa exaustos e de alma lavada foi a novidade durante uma semana ou meses nas reuniões de família e na roda com os colegas da escola.

O resto da história, todos conhecem. Os relatos e a memórias jamais devem ser esquecidas. O texto foi apenas um relato de um momento vivido nas arquibancadas, escrito com a paixão de um torcedor nas mãos de um professor e jornalista, seguindo apenas o critério de defender o futebol como um fenômeno social.  

Thunai Melo, professor de História e Jornalista. Amante da literatura futebolística, de games retrô, é um bom nostálgico do mundo da bola e um operário da mídia independente. Escreve para o Jornal Dia e Noite da Bola, Canal Bola Viva e para o Jornal Daki.