“Eu tinha ido para uma excursão no final do empréstimo com o Olaria e, quando eu voltei, a barba estava começando a crescer. E o diretor falou assim: ‘Você está parecendo um tocador de guitarra, um cantor de iê-iê-iê’. Olhava pra um, olhava pra outro. ‘Eu me apresentei aqui porque vocês fizeram questão. Eu não quero resolver a minha questão administrativamente’. Tinha ainda um final de contrato. No dia seguinte, estava proibido de receber material da rouparia, estava proibido de treinar. Eu tive que recorrer à Justiça porque ficou um impasse total”.disse Afonsinho em entrevista.
Ele não esperava que uma barba e a influencia da ditadura militar afetaria sua vida para sempre. Além de fazer com que as consequências da sua atitude fossem sentidas quase 30 anos depois.
Embora estivesse no meio da ditadura militar, esse homem desafiou o “conservadorismo” dos dirigentes do Botafogo. Uma vez que tentaram colocar rédeas no rebelde, viram que em pensamento livre, ideologia opressora nenhuma consegue vencer.
Hoje iremos ver uma pequena parte da trajetória do paulista que foi para o Rio de Janeiro e venceu uma diretoria inteira e um técnico campeão mundial.
O Afonsinho jogador
Afonso Celso Garcia Reis, nasceu dia 3 de outubro de 1947 em Marília, estado de São Paulo.
Jogou por diversos times, começando no XV de Jaú, passou por Botafogo, Olaria, Vasco, Santos, Flamengo, América Mg, Fluminense e Madureira.
Foi um dos poucos jogadores da história a atuar nos quatro grandes do Rio. Uma vez que poderia jogar onde quisesse, construiu sua história no futebol. Botafoguense de Coração, com o primeiro contrato profissional, comprou um apartamento de frente a General Severiano, sede do Alvinegro. O objetivo era poder se dedicar melhor aos treinamentos.
Era um jogador muito bom, já se destacando desde cedo. Inegavelmente aquele garoto de 17 anos seria ao longo do tempo titular e destaque do Botafogo pós Garrincha. Mas não era apenas nos campos que ele se destacava.
Altamente politizado e identificado com a esquerda, era considerado uma pessoa perigosa para o Regime Militar. A fim de não ser mais um no futebol, conciliou o esporte com a faculdade de medicina, pois desejava ter um futuro diferente da maioria dos atletas.
Logo que ingressou no ensino superior, participou dos movimentos estudantis, com o propósito de livrar o país dos militares.
Por causa da tensão pós AI 5, chegou a participar da guerrilha armada. Certamente que a vida dupla de estudante-guerrilheiro e jogador não duraria muito. Dessa maneira abriu mão da luta armada, mas isso o perseguiria a vida toda, já que o governo militar tentou de todas as formas atrapalhar o jogador.
Os times e os anos que o jogador passou:
- 1965 a 1970- Botafogo
- 1970- Olaria
- 1971- Vasco
- 1972- Flamengo
- 1972- Santos
- 1975- América MG
- 1977- XV de Jaú
- 1980- Madureira
- 1981- Fluminense
Porque Afonsinho escolheu o Botafogo
Embora o futebol seja um esporte saudável, em todas as ditaduras pelo mundo ele é usado para dominar um povo e muitas vezes impôr o pensamento do governo.
Seja como for, aqui no Brasil não seria diferente. No entanto, um dos clubes que foram dominados pela “onda do medo comunista” foi o Botafogo.
Nesse momento da história, a diretoria alvinegra estava recheada de “filhos da ditadura”, pessoas que concordavam em tudo com o governo militar. Com isso, dois nomes principais ganharam as manchetes e impulsionaram a briga com Afonsinho: Zagallo e Xisto Toniato.
Depois de um tempo no Botafogo, seria emprestado ao Olaria, que de começo o jogador recusou.
Seja como for, Afonsinho não tinha muita opção. Na época, o time do Olaria treinava em Caxias e era um considerado distante. Com isso, pegar o seu fusca e ir em direção a baixada todos os dias, era algo que ele não desejava. Além disso tinha certeza que o time suburbano não conseguiria honrar com os vencimentos. Mas, por ter contrato e era refém, acabou indo.
Antes de mais nada, vale lembrar que o presidente do Brasil era o Médice, o mesmo que armou nos bastidores para demitir um desafeto e comunista da seleção, João Saldanha. A intenção era colocar em seu lugar, Zagallo, o “queridinho” do governo e do presidente da CBF João Havelange, que tinha uma linha conservadora.
A briga
Quando foi emprestado ao time da Bariri, em Julho de 1970, ele já estava entre os grandes jogadores do Brasil e isso foi um diferencial para o time suburbano.
Depois de brilhar no Olaria, fazendo com o que o clube ficasse na parte de cima da tabela e brigando pelo título estadual, estava na hora de voltar a General Severiano. Mas nesse retorno, Afonsinho tinha mudado o visual e estava muito diferente.
Certamente essa volta seria marcante pela Barba e cabelos gigantes que o jogador ostentava.
Esse considerado “desleixo,” foi o “motivo” principal para a perseguição do clube com Afonsinho.
Zagallo e o diretor Xisto, impediram o jogador de treinar, pois considerava o visual do atleta agressivo e rebelde. O que na época não soava bem entre os “conservadores” botafoguenses.
A diretoria foi bem clara: corte o cabelo e a barba e volte a jogar, se não será afastado!
Os rumores entre os corredores diziam que o jogador estava parecendo o Che Guevara, e isso era inadmissível nos tempos de regime militar. Pois, como o Botafogo sofria influencia direta do governo, imaginem só…
A partir de Agosto daquele ano, Afonsinho foi proibido de jogar.
De origem humilde e extremamente inteligente, usaria o que fizeram com ele para reverter esse quadro. Ficou 8 meses sem jogar, mas deu a volta por cima.
O passe é meu
Afonsinho levaria até o limite sua vontade de ser livre. Pois estava sendo maltratado pelo time de coração. Porém, acima de tudo, sua liberdade era mais valiosa.
Depois de 8 meses na geladeira, não apenas magoado, foi diretamente prejudicado por ficar tanto tempo sem entrar em campo e de fora do cenário do futebol.
Isso provocou a ira do jogador que foi a justiça pedir liberação. Antes procurou os dirigentes do Botafogo e tentou um acordo amigável, nada feito.
Na época, um jogador de futebol ficava preso ao contrato de trabalho e mesmo após o termino, o atleta não ficava livre. Pois só poderia ser liberado caso o outro clube pagasse a multa rescisória.
Sem alternativas, o jogador recorreu ao STJD- SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA DESPORTIVA.
Depois de muita luta, em março de 1971, Afonsinho conseguiu seu passe livre e passou dai em diante , decidir seu futuro. E esse processo, influenciou anos depois, com leis e jogadores ficando menos reféns dos clubes.
Reportagens da época
- REVISTA O CRUZEIRO EDIÇÃO 35- 1973
” A barba era um protesto, não apenas uma opção de moda! Protesto contra a desorganização do futebol brasileiro e atraso de salários”
- REVISTA DO ESPORTE EDIÇÃO 575- 1970
O Botafogo colocou a venda o jogador por 150 mil cruzeiros, já que o jogador brigou com a diretoria . Nesse momento o jogador se encontra suspenso.
- JORNAL DO BRASIL EDIÇÃO 297 -2009
Jornalista do periódico compara o jogador ao líder comunista Che Guevara ( comparação feita também na época), líder de uma grande revolução no futebol , foi destaque em diversos clubes.
A CBF ficou ao lado dos militares e começou a inchar os campeonatos regionais e Brasileiros para atender ao projeto de “integração nacional.”
- CORREIO DA MANHÃ -QUARTA FEIRA- 1970
Afonsinho se reapresenta no Botafogo depois do sucesso no Olaria, justamente na semana de um Botafogo x Flamengo e esperava sim jogar. Brigou no campo com o Zagallo e com o Xisto. Chegou a trocar de roupa e ir treinar, o que despertou a ira de Zagallo e junto com Xisto foi falar com o jogador.
Afonsinho iniciou uma revolução e venceu. Certamente seu nome jamais será esquecido não apenas pelos que lutaram contra a ditadura, mas por aqueles que lutaram por melhores condições para os jogadores.
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